Noguetes

Assisti há uns dias a uma cena peculiar num restaurante de uma cadeia bastante popular, que me fez pôr em questão, pelo menos parcialmente, os meus preconceitos sobre as pessoas que aceitam esse tipo de empregos.

Claro que haverá sempre gente que não tem outra hipótese. Mas esses não me interessam. Sobre esses é mais difícil fazer piadas, não gosto.

Portanto, esclarece-se desde já que abordamos aqui as pessoas que OPTAM por esse tipo de empregos. Até hoje, considerei sempre que quando a inteligência e a capacidade de concentração estavam a ser distribuídas, essas pessoas estavam de costas a pedir mais dois frangos, por favor. Atenção: apenas difiro desta definição porque à minha inteligência débil e à minha capacidade de concentração, que é aproximadamente igual à de uma truta, junto níveis extraordinariamente elevados de preguiça e falta de iniciativa, razões que impedem que me candidate a um emprego desses.

Assisti então a uma pequena acção de formação, de um empregado “sénior” (uso as aspas porque parecia ter idade para festejar “ena, ena, mais dois meses e já posso tirar a carta”) a uma nova funcionária do restaurante. O tema: atendimento ao cliente. Que, tive essa revelação agora, tem mais nuances do que se poderia imaginar. Essa foi uma das revelações, a outra foi de que esses funcionários, na verdade, têm dúvidas sobre si mesmos e sobre o que os rodeia, e põem o sentido do mundo em questão.

Para já, há todo um ritual de preparação de um tabuleiro. Mentes inaptas e infelizes atrever-se-iam a considerar que se trata apenas de pôr um papel em cima de um tabuleiro, mas não; há uma técnica. “Vês? É daqui que tiras o tabuleiro e é assim que pões o papel no tabuleiro.” Naturalmente, em texto torna-se mais difícil de exemplificar. Mas percebem pelo bold que há um ênfase em certos movimentos que é indispensável, e que só os anos de prática levam à perfeição. Como que de uma dança se tratasse, ao som daquele apito irritante da máquina de fritar batatas. Será assim tão difícil alguém ter tempo para desligar a máquina quando aquele apito começa a soar? Quer dizer, das pessoas que estão na fila, ninguém trabalha lá, e no entanto toda a gente sabe que as batatas estão prontas. Menos as pessoas que têm cargos no restaurante.

Mas a principal questão vem a seguir. “Pões a palha…” [uma nota: não consigo neste momento precisar se o termo usado foi “palha” ou “palhinha”. Não vou, no entanto, usar o diminutivo, porque se trata de um momento de uma certa solenidade] “… e dois guardanapos.”. E aqui é que a porca torce o rabo. Porque se até aqui tudo estava a fazer sentido para a pobre novata, neste momento todas as suas crenças se desmoronaram. “A patroa disse para pôr três.”. Note-se que há uma certa segurança neste desafio ao formador, mas não é uma segurança arrogante. É só a segurança de alguém que não quer quebrar cadeias hierárquicas, e que tinha ordens superiores para colocar três, e não dois, guardanapos no tabuleiro.

A tensão daquele momento sentiu-se em todo o balcão. Só a experiência do empregado “sénior”, certamente já com várias acções de formação idênticas no currículo, lhe permitiu fintar a questão, afirmando “Não, pões dois, e se o cliente quiser, pões mais.”. Deves estar muito orgulhoso, deves, a atirar a responsabilidade para o cliente. Felizmente a novata não se deixou convencer, olhando de soslaio o monte de guardanapos. Algo naquela testa franzida disse “tá bem, tá. A patroa disse três e eu três porei.”. Era uma testa particularmente expressiva.

Percebi então que há duas correntes filosóficas em constante divergência naquele restaurante. Por um lado, os Naturalistas. Pessoas que defendem que o papel deve ser poupado, e que só um cliente selvagem e sem qualquer noção de reciclagem exige o terceiro guardanapo. Por outro, os Descrentes. Aqueles que sabem com quem lidam, observando em silêncio a degradação dos costumes que os fita do outro lado do balcão. “Olho-te nos olhos e percebo a tua decadência; entregar-te-ei os três guardanapos três, sim. Os três guardanapos três em que esvairás fluidos tipo ketchup e isso, até ao dia em que o poder te abandonará. Já leste o Triunfo dos Porcos? Ah, pois. Tu és um dos porcos. Nunca leste? Eu também não. Mas acho que os porcos se arrependem, ou qualquer coisa assim. E tu vais-te arrepender, portanto, és um dos porcos.” Isto não resulta se houver vestígios de carne de porco no hambúrguer. Passa a ser uma metáfora de canibalismo, e tem menos força.

Portanto, da próxima vez, contem os vossos guardanapos. Podem descobrir muito sobre o que se passa nos bastidores de um restaurante.

2 Resposta(s) a “Noguetes”

  1. # Blogger Dama do Oriente 11:35 da manhã

    Devias fazer o workshop das producoes ficticias! Este texto e genial! Ainda bem que voltaste a escrever.  

  2. # Anonymous Anónimo 12:13 da manhã

    tá giro!! gosto principalmente da parte da preguiça e da falta de concentração!! principalmente pq acho k vou ganhar uma pipa massa nos direitos de autor!! em relação á inteligência débil admito k é 100% original.

    já agora, aonde é k um texto deste tamanho e a falta de iniciativa coexistem??  

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