Modernices

Este ano a minha faculdade optou por realizar as inscrições on-line, através do recentemente remodelado site. Tudo para nos facilitar a vida, pensávamos nós, que assim não tínhamos de passar pela agreste tarefa de esperar horas na fila da secretaria como acontecia antes. Assim, este ano, em vez de ir à faculdade uma vez para me inscrever, só tive de ir à secretaria pagar as propinas, e voltar lá depois para levantar a password para aceder ao site, e voltar lá depois para entregar a fotografia. E ontem telefonaram-me para ir com urgência à secretaria para preencher uma ficha com os meus contactos. Começo a achar que alguém não percebeu bem o conceito de "inscrição on-line".

Às vezes sinto uma pequena necessidade de intelectualizar de alguma forma a minha existência; é uma espécie de adaptação a uma elite culturalmente superior. Ontem tive portanto uma pequena pontada na glândula cultural e resolvi ir ao teatro. Não estando neste momento em cena nenhum teatro de revista no Sá da Bandeira, resolvi ir ver outra peça. Mas não percebi.

Mas apercebi-me, isso sim, através da tal aproximação à elite, que não fui o único a não perceber. Simplesmente, existem diversos códigos que a elite cultural desenvolveu para reagir à cultura propriamente dita, sem a chegarem a observar ou apreciar. Eu diria que, em extremo, a elite cultural não chega sequer a saber onde está a cultura. Simplesmente, vai lançando esses tais códigos.

A minha preferida foi, sem dúvida, a risadinha amarga. É uma espécie de jogo para peças de teatro. O objectivo do jogo é ser-se a única pessoa da assistência a lançar a risadinha amarga num dado momento, como o final de uma frase, ou até mesmo uma pausa numa frase. Uma espécie de constatação, em que a risada é feita de forma a transmitir uma mensagem muito específica, como "deus, oh deus, como compreendo o sofrimento desta personagem, como é puro este sentimento, este texto, esta leitura, oh deus, oh deus". Se a risadinha amarga for lançada no momento certo, então será uma altura em que ninguém está a conseguir acompanhar o texto, e o resto do público fica assim a considerar-se totalmente ignorante e indigna da companhia do(a) autor(a) da risadinha.

Só não descobri é como é que eles acompanham o evoluir da pontuação, imagino que haja alguém na cabine de som a contar as risadinhas de cada um. Tenho ideia que se reuniram todos depois da peça, para atribuírem o primeiro lugar, mas não posso confirmar porque vim logo para casa, que o raio da peça dura três horas.



Hoje à tarde fui lanchar com amigos. Agora quem lê isto começa "ahahah, lá está este com as suas brincadeiras, julga que tem piada. Por acaso, esta de ele ter amigos até tem a sua graça.". Mas não, fui mesmo. Eu tenho amigos. Não cheguei a saber o nome deles, eles já estavam lá sentados e eu não me apresentei, mas tenho amigos. Não me deram o contacto deles, disseram que me telefonavam. Até disseram que nem valia a pena ficarem com o meu número. São porreiros, os meus amigos.

Mas pronto, fui lanchar fora de casa. Para quem está habituado a lanchar Chocapic ou um pacote inteiro de qualquer tipo de bolachas, excepto daquelas com recheios de morango ou pêssegos ou frutas ou lá o que é aquilo que parece que estraga a bolacha porque ganha humidade e para mim a humidade é sinónimo de bolor e por muito que a penicilina venha daí ninguém me convence que seja saudável, qualquer coisa que se lanche fora de casa é fino, chique e com requinte.

Fui a um café no Cais de Gaia. Só por isso, já é assinalável. Porque qualquer coisa que se coma baratinho numa qualquer tasca em qualquer zona da Área Metropolitana do Porto, custa o dobro ou mais no Cais de Gaia. Mas quem é fixe vai ao Cais de Gaia. O Nova Era Café, por exemplo, está sempre cheio. Uma pessoa sem qualquer noção de fixe certamente pensaria, inocentemente e numa atitude plena de ignorância, "olha que porra, se não se ouve o que as pessoas nos dizem e a música é uma bosta, por que raio se junta tanta gente aqui?". Mas isso é totalmente não-fixe. Eu, considerando-me neutro em termos de fixe e não-fixe, fui a outro e prefiro manter distância do Nova Era. No entanto, gosto de dizer "Ah, já lá estive. É porreirito.", apesar de só ter entrado para usar as casas de banho.

Fui a um café de uma marca de cafés, passe a redundância, cujo nome "começa em B, acaba em i, e tem no meio as letras ogan". Para começar, faz-me sempre confusão ir a um café de uma marca de cafés. Porque eles têm sempre aquelas paredes bonitinhas cheias de tubinhos transparentes com cafés diferentes, ordenados por tom de castanho, qual papel de parede de sala de jantar de designer. E depois perguntam-nos "o que deseja?" e eu fico sempre encavacado quando tenho de dizer "um café". Quer dizer, eles sorriem e vão buscar um café, mas se eu trabalhasse lá à segunda semana berrava a um cliente "UM CAFÉ? É ISSO? Trinta marcas de cafés de vinte países diferentes e você quer UM CAFÉ? SIMPLÓRIO!".

Mas a maravilha veio depois. Um tabuleiro enorme, com uma chávenazita com café, um copinho de água, um pratinho com um bombonzinho, uma tacinha com três tipos de açúcarzinho, e ainda duas tacinhas, uma com leitinho e outra com natinhas. Estou maravilhado. Eu sei que tenho pouca consciência do que é "fino", e quando janto em lugares chiques fico sempre sem saber o que fazer àqueles talheres todos, mas nunca pensei que ainda me faltasse aprender a beber café.

E ainda estou para perceber porquê aquela cara de espanto da empregada quando lhe pedi um termos para trazer o leite para casa. Racistas.

Vozes

O principal problema de passar férias com a minha avó paterna é que demoro a recuperar e nas semanas seguintes fico a ouvir vozes durante as refeições "comeste pouco. come mais qualquer coisa. come um iogurte. queres fruta? come bolo. não te serves outra vez? comeste tão pouco. vais ficar com fome. daqui a pouco estás aqui a comer bolachas. come mais.".

Viver na aldeia é bom.



O atendimento do McDrive é que é um bocadinho mais lento.



Só é preciso explicar as coisas com mais cuidado.




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